The Longing: sobre luto, vontade de poder e angústia.

Fernando Žvingila Seixas
20 min readDec 11, 2020

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Eu sempre gostei muito de jogos eletrônicos — e sempre me guiei muito mais pelas histórias e experiências do que pelas mecânicas de jogo. Eu não me lembro exatamente como eu fiquei sabendo desse título do Studio Seufz, mas a premissa me ganhou quase que de primeira: um jogo que durava 400 dias e era baseado em esperar o tempo passar:

O estilo particular da arte, a trilha sonora do trailer e, sobretudo, a atmosfera solitária e melancólica do jogo: tudo isso parecia incrível — e de fato é.

Eu não sei exatamente quanto tempo eu levei para terminar o jogo, que terminou quando faltavam ainda 278 dias para o despertar do Rei, mas foi tempo suficiente para que eu criasse umas tantas leituras e inferências a partir das pistas que o enredo vago dá ao jogador, que começa apenas com uma premissa: a de acordar o Rei após 400 dias para que “toda tristeza e anseio cessem” — e foi graças a essas inferências e pistas que eu acredito que The Longing, desde o início, é uma história sobre perdas, luto, angústia e aceitação.

Se você pretende jogar ou está, ainda, jogando, eu recomendo fortemente que não leia o restante do texto até ter terminado o jogo por um motivo simples: spoilers à frente.

I. O Começo do jogo

The Longing começa com uma abertura rápida:

O Rei, adormecido, e a Sombra

“Muito, muito fundo
Debaixo da terra
Lá estão os domínios
De um velho rei.”

E, em sua sequência, fala o Rei:

“Meus poderes se desvanecem.
Tudo que me resta é você, minha fiel sombra.
Tudo que lhe peço é que aguarde
E que nunca abandone essas cavernas.
Eu hei de dormir, agora, por 400 dias
Para juntar o que me restou de forças
Acorde-me quando chegar a hora
De acabar com todo medo e anseio.

Ao longo dos primeiros minutos ou horas de jogo, é possível reunir algumas informações importantes e descobrir alguns locais interessantes.
A primeira informação que temos é de que estamos sós. Os domínios do Rei estão, de fato, desertos, e a cada porta selada a Sombra se pergunta se deveria ou não prosseguir — pois há claramente uma relação de submissão da Sombra em relação ao Rei.

Conforme o jogo avança, a Sombra começa a demonstrar sua personalidade triste e melancólica; “A solidão é real”; “A água aqui não é suficientemente funda para eu me afogar”; “Eu busco por algo nessas cavernas, só não sei exatamente o quê”; “Isso parece uma entrada para um lugar escuro e solitário. Exatamente o que eu preciso”; “Eu estou verdadeiramente só”; “O guardião solitário patrulha as ruas vazias”; “Eu nunca entendi a vida” e “Um pedaço de Lápis-lazúli! Agora eu posso pintar o céu azul que eu nunca verei” são algumas das frases que a personagem fala casualmente ao longo dos salões e cavernas vazios.

De cara, no entanto, sempre houve algo que me deixou bastante intrigado: a figura estóica do Rei. Todos os ambientes do jogo — os salões, as cavernas, a saída, tudo isso se dá num sentindo ascendente em relação ao começo do jogo e, mais importante, imediatamente acima do Rei — mas não só acima do Rei, mas a partir dele:

A coroa do Rei é, na verdade, o que sustenta todo seu reino

O fato de que a coroa sustenta todo o reino e que este nasce da cabeça dele terá implicações mais à frente. Sigamos.

II. Sonhos e outros personagens

Há, ao todo, 6 personagens em The Longing que você vislumbra nas cavernas: o Velho, a Criança, o Amigo, a Cegonha, o Rosto e a Angústia (falaremos desses dois últimos mais à frente).

A Cegonha só aparece quase no final do jogo, na Torre Secreta, portando a chave da Porta de Madeira e liberando o quinto final do jogo.

O Amigo é a Aranha, já preconizada desde o início do jogo pois é um dos quadros que o jogador pode pintar usando o pedaço de carvão.

O Velho e a Criança

O Velho e a Criança só aparecem depois que a Sombra alucina — o que eu consegui comendo cogumelos, mas que aparentemente pode ser conseguido também construindo uma cama e dormindo nela. Os sonhos são:

  1. A Criança carrega um balde na superfície, passando em frente à entrada da caverna que está obstruída. Essa entrada é a mesma que vimos na introdução do jogo.
  2. Exatamente como o primeiro, mas quem protagoniza o sonho é o Velho e não a Criança.
  3. A Criança está sentada ao lado de um poço enquanto o Velho puxa um balde de dentro do mesmo; uma aranha salta do poço, assustando a Criança.

A partir dos sonhos, percebe-se que há vida fora das cavernas e dos salões do Rei, mas a saída está bloqueada. “Mas que belo e estranho sonho!”, diz a Sombra ao acordar — mas, em seu diário, se pergunta se era mesmo só um sonho.

III. Quadros nas paredes

Após conseguir todas as cores para pintar os quadros e passar algumas horas nos Salões da Eternidade, peguei-me pintando quadro depois de quadro na casa da Sombra — e logo comecei a prestar atenção nos nomes dos quadros: eles pareciam contar uma história ainda pouco clara. Vamos tomar alguns pontos:

Nos primeiros quadros que podemos fazer, há um presságio do Amigo. Além disso, a Sombre se vê como um borrão amorfo e nomeia uma silhueta escura como ‘pai’; a coroa recebe o nome de “alma”.

Muito similar, mas agora os próprios olhos da Sombra recebem o nome “escuridão”.

Aqui, há um “ele” e uma “ela” (EHS e EH, em inglês e escrito ao contrário: HE e SHE; essa configuração aparece mais vezes), mas o que me chama a atenção é o quadro chamado Rapeseed — ou Colza, em português. Colza é um tipo de planta cultivada em diversos países e que o Estúdio Seufz já utilizou em outros trabalhos falando sobre morte e o que espera os mortos do outro lado.

Aqui algo começa a ficar claro. Há um Criador e há uma Criatura — respectivamente, o Rei e a própria Sombra. E, no segundo quadro, ‘O Abismo’, percebe-se um formato que enseja um tronco humano.

Por fim, três sequências: ‘Fique ou saia’; ‘noite versus dia’ e ‘tempo I, II e III’. Sobre a sequência do tempo, trataremos mais adiante; sobre a primeira sequência, perceba que a Escuridão (e não a Sombra, como eu pensei na hora) é coroada, e não o Rei, o que sugere 1. uma substituição ou 2. que ambos tenham algo em comum.

IV. Um Rosto e profecias

Há, nas cavernas, um Rosto que lhe responde três perguntas: como superar [ou dominar] a Escuridão?; O que há depois da caverna?; O que acontecerá após os 400 dias?

As respostas são:

“O caminho para a luz é bloqueado pela escuridão completa. Você apenas poderá dominar a escuridão se você aprender a se tornar a próprio escuridão. Dessa forma, tornar-se-há invisível para ela. Mas isso você só conseguirá se mergulhar fundo, fundo em sua própria mente em solidão consciente.”

Exploraremos o trecho acima no tópico V.

“Para além dessa caverna há luz. A luz é bela e perigosa. A luz é sem entendimento. Não creia nos olhos inocentes das crianças, pois eles o temerão. Acreditai apenas nos olhos velhos e cegos, pois eles não temem aquilo que pode emergir da escuridão.”

Em referência ao Velho e à Criança. Quando a criança se deparou com uma aranha em um dos sonhos, a mesma se assustou, enquanto o Velho agiu tranquilamente.

“Enquanto houver tempo, haverá para sempre anseio. E uma vez que todo anseio findar, o mundo não mais precisará de tempo… E aqueles sem anseios não mais irão precisar do mundo.”

A sequência “Tempo I, II e II”, nos quadros na parede, demonstram a Sombra dentro de uma ampulheta. Enquanto há areia rolando, a Sombra está se afogando. Quando não há mais tempo (Tempo III), não há também a Sombra.

Durante as leituras da Sombra em sua casinha, o livro Poemas II contém um poema chamado Rei:

O Rei

O antigo Rei das almas, não nomeado,
O Kaiser intocado,
Em seu castelo-caverna
Se senta em trono encantado.

Ele não morreu; o ouço
Esperando nos salões fundos,
Onde escondido sob o poço
Se sentou em sono profundo

O esplendor de seu Império
Ele tomou consigo,
E de volta à Terra o trará
Quando raiar o dia prometido.

A fim de findar todo medo e anseio
Ele há de se erguer, findando seu eclipse.
Assim tomará o mundo todo consigo
em um último apocalipse.

Ele suplica à sua sombra entorpecido
‘Ó, pequeno, não abandonai minha companhia,
Pois não pode uma alma essas cavernas deixar,
Mas um reles corpo poderia.’

V. Angústia

Em um dado momento, a Sombra se depara com um lugar completamente escuro e com sons estranhos de fundo. A música cessa. “Eu sinto a presença de uma grande escuridão nessas cavernas. Eu me pergunto se um dia serei capaz de superá-la”, escreve em seu diário.

Em um dos momentos mais chocantes do jogo, a Sombra se depara com a Angústia — que é assim chamada pois é igual a uma pintura homônima em sua casinha.

“Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti” — NIETZSCHE, F. in ‘Para Além do Bem e do Mal’.

A Angústia — ou a Escuridão — olha fixamente a Sombra, ambas já indistinguíveis na penumbra. Ao se aproximar demais, alguém fala ‘Eu te vejo!’ e a Sombra acorda em sua casa se queixando de um pesadelo. A única forma de atravessar a Angústia é tornando-se a própria Escuridão através de uma meditação consciente e solitária: a Sombra, após algum tempo sentada e sozinha, decide tornar-se a Escuridão — o que, no universo do jogo, é feito de maneira bastante simples: fechando os olhos e tornando-se invisível à Angústia.

Ao se aproximar da Angústia de olhos fechados, no entanto, alguém pergunta ‘Quem é você…?’ e a partir daí apenas um par de olhos é visível na Escuridão.

Primeiro ponto: não sabemos se quem fala essas frases é a Sombra ou a Angústia — o que me leva à ideia de que tanto faz, pois ambos são, em algum limite, projeções feitas a partir da mente de um criador dentro de sua própria mente — o Rei e o Reino.

Segundo ponto: tornar-se a Escuridão é necessário para superar — ou dominar — a Angústia. Apenas um par de olhos se mantém, pois aquele outro que é sem forma é uma manifestação de dor reprimida que impede que a Sombra continue seu caminho ascendente.

Ao contemplar longamente o abismo — que é o escuro amorfo e vazio — o próprio vazio nos engole; as sensações e concepções e sentimentos se diluem e reverberam nos ecos distantes de um não-corpo. Projetamo-nos no vazio e o vazio se projeta em nós, podemos nos encarar desnudos e vislumbrar o esfacelamento daquilo que é nossa própria consciência. A Sombra, ao se tornar a Escuridão, assume nela aquilo que é desconhecido e assustador, e só assim, completa e consciente, pode superar, dominar e incorporar aquilo que é seu espelho: a Angústia.

VI. Nietzsche: Niilismo, Vontade de Poder e o Amor pelo Real

Nietzsche é referenciado mais de uma vez ao longo da jornada da Sombra, direta ou indiretamente.

Primeiro, sua magnum opus, ‘Assim Falou Zaratustra’, pode ser lida integralmente dentro do jogo através dos livros que a Sombra encontra no Reino.

Segundo, o momento em que a Sombra se depara com a Angústia logo após se deparar com um abismo, em referência à passagem do livro ‘‘Para Além do Bem e do Mal’’.

Terceiro, o Rei adormecido sob a montanha faz menção a uma lenda alemã que remete a Frederico I, ou Frederico Barba-Ruiva, que está supostamente adormecido com seus soldados sob as montanhas da Turíngia ou da Baviera. Alemães também são o Estúdio que produziu o jogo e o filósofo Friedrich Nietzsche.

Friedrich Nietzsche (1844–1900)

É importante aqui elaborar — de maneira sucinta — alguns conceitos do filósofo para podermos, enfim, interpretar esse jogo à luz de seus finais.

Friedrich Nietzsche nasceu em 1844 na Prússia e morreu, jovem, em decorrência da sífilis em 1900; passou os últimos anos de sua vida catatônico graças à doença. Testemunhou a unificação da Alemanha e foi um grande crítico do mundo ocidental e da moral cristã.

Primeiramente, Nietzsche é contra toda forma de niilismo. Niilismo, para Nietzsche, significa a fuga da realidade e da vida como ela se apresenta. Dessa forma, é niilista negar a materialidade, os desejos, os instintos, os sentidos, os sentimentos e afins; Para o filósofo, ser niilista é negar a vida e o corpo e, a partir dessa premissa, propõe uma inversão de moralidades.

Para Nietzsche, a Vontade de Poder é a essência do mundo: tudo que é busca sua expansão; a essência de todas as coisas é expandir, dominar e se afirmar. Dessa forma, há uma Vontade de Poder nobre, que afirma sua singularidade, e uma Vontade de Poder rasteira, que é de caráter reativo: essa impede que outras formas de Vontade de Poder se reafirmem no mundo e, portanto, nega os instintos. Essas formas de Vontade de Poder são transitórias nos seres e a moral, como conhecemos, é uma criação das forças reativas pois visa cercear a Vontade daqueles que querem se afirmar no mundo.

Para Nietzsche, a vida que ascende é, portanto uma vida pautada nos instintos, pois só essa pode ser uma vida feliz — mas não para aí.

Nietzsche acreditava também que devemos sempre afirmar a tragédia ou a inevitabilidade da vida — o que ele chamou de Amor Fati — abraçando-a e superando aquilo em nós que pede uma moral. Em outras palavras, propõe uma superação da subjetividade em que se nega o passado e o futuro, amando só aquilo que é real — portanto, que é agora. Pois, ora, do passado pode vir a culpa ou a saudade enquanto do futuro vem apenas a esperança ou o temor: são, portanto, idealizações; se são idealizações, estão no campo do que não é real e, portanto, da ilusão — em outras palavras, no campo no niilismo.

O momento presente é, portanto, o único momento real. É então necessário destruir os ídolos — as coisas idealizadas na mente e a própria ideia que temos das coisas — para amar as coisas realmente. A condição do amor pelo real é a desconstrução do amor pelo irreal. Avancemos.

No mundo da vida, ainda, nada está parado; ninguém domina nada e tudo é um eterno vir-a-não-ser. Isso quer dizer que todas as coisas estão permanentemente em mudança — e há, portanto, um descompasso entre o mundo da vida e o mundo das verdades que se propõem como eternas: verdades não existem por excelências pois são a busca de solidez num espaço de fluidez (a vida).

VII. Ainda sobre Nietzsche: Consciência e Eterno Retorno

Finalizando sobre Nietzsche, eu queria explorar mais dois conceitos importantes. Comecemos pela Consciência.

Para Nietzsche, a Consciência é a parte menos importante da psique — ou seja, de tudo que determinado ser pensa. A parte mais intrigante é o Inconsciente, e para explicá-lo, usaremos a metáfora do canhão de luz*:

Imagine uma sala escura, onde não se consegue enxergar nada. Agora imagine que há alguém que tem nas mãos uma lanterna, capaz de iluminar uma certa região do quarto. A área iluminada é o seu consciente — aquilo que está fora da luz, na escuridão, é o seu inconsciente. A área iluminada será sempre muito menor que a área em penumbra.

Dessa metáfora, a grande questão é: perceba que quem detém o poder da lanterna não é você, há uma força que pensa. Não se é totalmente responsável pelo que se pensa.

“Eu não penso. Algo pensa em mim.”
NIETZSCHE, F.

O pensamento, portanto, é criado sem um eu articulador, pois não existe eu. Trata-se da imanência do corpo. E iremos abordar isso no próximo tópico.

O último conceito de Nietzsche é o Eterno Retorno. O Eterno Retorno, nas palavras do professor Clóvis de Barros Filho, é um ‘mecanismo de atribuição de valor; de triagem dos instantes de vida’:

“É no seio do terreno sobre esta terra, nesta vida, que é preciso distinguir o que vale a pena ser vivido e o que merece perecer.”
NIETZSCHE, F. in “Vontade de Potência”.

O Eterno Retorno é, portanto, uma proposta de sabedoria e de procedimento, e nada tem a ver com uma vida cíclica. Ora, da mesma forma, negando o niilismo, essas escolhas devem se dar na vida e a partir de elementos da vida.

“Se em tudo aquilo que queres fazer, começares a te perguntar será que quero mesmo fazê-lo um número infinito de vezes? Isso será para ti o centro de gravidade mais sólido. Minha doutrina ensina: Vive de tal maneira que devas desejar reviver. É o dever. Aquele cujo esforço é a alegria suprema, que se esforce. Aquele que ama, antes de tudo, o repouso, que repouse. Aquele que ama, antes de tudo, obedecer e seguir, que obedeça. Mas que saiba bem aonde vai a sua preferência. E que não recue ante a nenhum meio. É a eternidade da vida que está em jogo. Essa doutrina é amável para aqueles que não acreditam nela. Ela não possui nem inferno, nem ameaças. Aquele que não acredita, sentirá, em si, apenas uma vida fugaz”.”
NIETZSCHE, F. Ibid.

Ora, o que Nietzsche propõe é que àquele que vive, que viva querendo que o instante nunca termine. É, partindo da particularidade de quem vive, que se submeta toda experiência da vida à Vontade de Poder. A avaliação, portanto, deve se dar a partir do que há de mais vital na vida, a saber, o desejo.

É vital, portanto, saber o que se deseja e, sabendo o que se deseja, não recuar jamais, pois aplicar o Eterno Retorno gera instabilidades, dificulta certos acordos e entra em choque com a moral. A vida boa, portanto, é turbulenta.

VIII. Os últimos elementos e onde o jogo se passa

Posto tudo isso, há uma série de elementos colocados ao longo do jogo que nos levam a crer que toda a história não se passa nem nos salões do Rei, nem nas cavernas; antes, toda a história de The Longing se passa em um não-lugar.

Pois sabemos que 1. a Sombra é uma criação do Rei; 2. a Sombra possui consciência e autonomia, mas está proibida de atravessar para além dos salões do reino (Vontade de Potência afirmativa versus Vontade de Potência reativa); 3. Todo o universo que a Sombra percorre nasce a partir da cabeça do Rei (pois são uma extensão de sua ‘coroa’) podendo ser entendido como sua psique — nessa chave, a Sombra é o canhão de luz e isso explica a razão pela qual há similaridade na representação dos quadros entre a Sombra e seu Pai, assim como casa com a mecânica de jogo onde as coisas continuam a acontecer mesmo sem sua presença: pois o subconsciente continua operando mesmo sem a ‘presença’ do que é consciente; 4. Há um quadro chamado ‘Abismo’ que representa cavernas dentro de um tronco humano.

Com esses elementos, The Longing é uma jornada através da psique em que um ser deve se reafirmar para ter uma vida ascendente — mas, como eu disse no começo desse artigo, eu acredito que o jogo trata de luto, e a razão para isso é bastante simples: há alguém que morreu.

Na superfície, a Sombra encontra uma lápide

“Bem debaixo da terra repousa uma pobre alma que está agora para sempre perdida.”

IX. Finais possíveis e impossíveis

Por fim, The Longing possui 5 finais. Vamos abordá-los um a um:

O Suicídio

Se a Sombra nunca consegue atravessar a Angústia, há apenas dois caminhos restantes: aguardar os dias para acordar o Rei ou cometer suicídio do precipício.

O penhasco leva ao fim.

“Ali está um abismo sem fundo. O lugar certo para minha alma.”
“Mas isso é, de verdade, o fim? Eu só tenho uma vida…”
“Meu anseio findará para sempre… Não haverá como voltar atrás depois disso.”

Aqui, a vontade de exercer sua Vontade e de viver é bloqueada pela Angústia, que sempre retorna a Sombra de volta ao ponto inicial, criando um ciclo vicioso — O Mito de Sísifo. No entanto, aqui, ao invés de se revoltar, a Sombra termina por encerrar sua vida. Aqui, o luto nunca é superado.

A Tragédia

Como o Rosto avisou, como o sonho demonstrou e como os quadros preconizaram, há um caminho de saído dos salões que termina em tragédia.

A Tragédia leva o rosto da Criança, que leva à Morte.

Nesse final, mesmo superada a Angústia, o caminho para fora das cavernas não é exitoso: a Criança, assustada, derruba a Sombra, matando-a. Aqui, ouso três interpretações (que não se anulam): 1. o caminho da superação pode, por vezes, ser interrompido por forças caóticas sobre as quais não temos pleno controle — o que chamamos de tragédia; 2. nem todas as pessoas são capazes de compreender o luto e a dor, e podem acabar, ainda que sem querer, agravando essas condições; e 3. o caminho da superação do luto exige paciência — e isso é interpretado pois a Criança passa muito mais vezes com o balde na superfície do que o Velho.

A Fuga

Na Torre Secreta há uma Cegonha. A Cegonha carrega uma chave que dá acesso a uma porta secreta nos salões do Rei, que você deve acessar para reunir os cristais e liberar o final com a Cegonha.

Nesse final, um portal de onde emana luz se abre e a Sombra pode atravessá-lo. Na sequência, a Sombra aparece montada na Cegonha ostentando a coroa. “Uma vez eu sonhei que eu era o próprio Rei. Mas que belo sonho foi!”

Muita gente atribui um caráter positivo a esse final. Eu não.

Nos quadros, a figura da Cegonha leva o nome de ‘Dúvida’ e sempre está entre a Vitória e a Derrota — sendo sempre a Vitória a Não-Cegonha (o ovo não chocado ou a ave sem cabeça) e a Derrota a Cegonha (o ovo chocado, a ave voando).

À luz de Nietzsche, esse final só pode representar o Niilismo: não há fuga das cavernas ou do reino, mas o Rei não é despertado. A Sombra passa a existir num sonho, longe da materialidade, entregue à fantasia. A Sombra nunca se liberta.

Despertando o Rei

Após os 400 dias, a Sombre pode despertar o Rei, finalmente. ‘Como o Rei irá recompensar seu fiel guardião’, ela se pergunta, antes de acordá-lo.

Na sequência que se segue, o Rei acorda e, levantando-se de seu trono, sua coroa se parte, deixando todo seu reinado sem sustentação. Sobre sua cabeça a caverna sucumbe. Na escuridão, o Rei fala:

“Minha fiel Sombra… Você me acordou e eu mantive minhas promessas. Eu criei um mundo sem anseios destruindo tudo que há nele. Toda vida pereceu, mas nós não precisamos mais disso. Eternamente nós iremos reinar sobre este reino eterno.”

O Rei e a Sombra no Reino Eterno

A fim de findar todo medo e anseio
Ele há de se erguer, findando seu eclipse.
Assim tomará o mundo todo consigo
em um último apocalipse.
(Poema ‘Rei’)

“Enquanto houver tempo, haverá para sempre anseio. E uma vez que todo anseio findar, o mundo não mais precisará de tempo… E aqueles sem anseios não mais irão precisar do mundo.”
(O Rosto)

Nesse final, a Sombra torna-se para sempre presa à figura do Rei em um undo que não existe; o reino é destruído e as memórias, portanto, hão de se perder. O luto, mais uma vez, nunca é superado e condena até as memórias daquele que partiu.

A Superação

Há, a meu ver, um único final realmente feliz em The Longing.

Ele consiste em assumir a tragédia do mundo e operar de acordo com suas vontades, superar e dominar a Angústia, virar as costas para os ídolos de pedra que cerceiam a liberdade e a felicidade, praticar autoconhecimento e ser paciente. O caminho ascendente é o mais comprido, mas é o que traz recompensas reais.

A Angústia e, ao lado dela, a Família, que representa a Sombra após sua ‘redenção’; em baixo, o Velho é chamado de ‘Salvador’, pois é o único capaz de erguer o balde com a Sombra sem se assustar.

Ele suplica à sua sombra entorpecido
‘Ó, pequeno, não abandonai minha companhia,
Pois não pode uma alma essas cavernas deixar,
Mas um reles corpo poderia.’
(Poema ‘Rei’)

No processo de materialização — quando a Sombra abandona o mundo que é, em termos, idealizado a partir da cabeça do Rei e adentra a Superfície — é que se compreende que ela possui, de fato, um corpo, e não é só uma sombra.

Na sequência, ela toma um banho, que a laca de toda fuligem de carvão, revelando uma pessoa sentada à mesa com uma família — o Velho cego, a Criança e uma Velha, que até então não havia aparecido e que aparece sorrindo em sua companhia.

Por fim, ao abandonar o reino, o mundo subterrâneo rui por completo. ‘Eu alcancei o mundo exterior… Mas a que custo?’, se pergunta a Sombra, pois ainda possui algum apego ao Rei e ao reino — ou ao luto.

Ao lado da casa da família, está a lápide já citada.

E o jogo termina com a imagem do Rei, ainda sentado em seu trono, porém agora em cacos ao lado da inscrição “O Anseio terminou”.

“Não esperem de mim que eu erija novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter os pés de barro! Derrubar ‘ídolos’ — é assim que chamo todos os ideais -, esse é meu verdadeiro ofício. É inventando a mentira de um mundo ideal que se tira o valor da realidade, sua significação, sua veracidade…”
- NIETZSCHE, F. in ‘Ecce Homo’.

X. Considerações Finais

Há diversos elementos literais ou semióticos ao longo de toda jornada de The Longing que permitem que a metáfora do Luto e as associações com a filosofia de Nietzsche sejam levantadas; no entanto a própria forma narrativa do jogo abre margem para mais interpretações.

A história que está ‘pairando’ sobre o jogo, aliada à sua mecânica particular e à proposta de ser uma experiência única (uma vez terminado o jogo você não pode jogar de novo) abrem margem para diversas interpretações distintas de seus significados possíveis — tanto aqueles sobre os quais o jogo fala, tanto sobre a história que se passa dentro do jogo.

The Longing é sobre até onde somos Sombras e até onde estamos dispostos a ir para enfrentar medos e angústias; até onde conseguimos esperar para chegarmos na superfície; até onde estamos determinados a abandonar as coisas que construímos com amor e carinho (a casinha da Sombra) para abraçarmos o mundo da vida em todas as suas particularidades, ora trágicas, ora fantásticas.

Mais do que isso, sobre como é importante e difícil os processos de superação do luto e do abandono e do sentimento de não-estar-mais-ali-quem-estava. Como nos apegamos às memórias e aos espaços agora vazios, aos sussurros e tesouros que não nos pertenceram e sequer nos servem por medo de abraçarmos e dominarmos nossas angústias e medos. É também sobre como é importante ter as pessoas certas do outro lado do poço. E, também, sobre como o luto deve ser trabalhado e não recalcado; o processo de superação — do anseio, do luto, da angústia — não é um que se enterra e espera-se que passe, mas um que se traz para dentro de casa, se abraça e se trabalha.

É sobre como nunca estamos de todo sozinhos e que todo anseio acaba.

(E, por que não: sobre como Família é algo muito mais sobre laços do que sobre de onde você veio.)

O anseio terminou

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Fernando Žvingila Seixas

Fernando Zvingila é brasileiro, latino-americano, graduando em História, poeta, comunista e um dia vai morrer.